
Insegurança jurídica gerada pela não observância dos dispositivos do Marco Civil da Internet pelos Tribunais do país
Por Isabella Perez Censon, Henrique Fehr e João Guilherme Monteiro Petroni
Insegurança jurídica gerada pela não observância dos dispositivos do Marco Civil da Internet pelos Tribunais do país
Embora o legislador tenha buscado, com o Marco Civil da Internet, criar mecanismos para evitar a judicialização excessiva e a sobrecarga do Poder Judiciário com demandas que poderiam ser resolvidas de forma administrativa, a prática jurídica nem sempre segue esse propósito. A jurisprudência dos Tribunais pátrios, por exemplo, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, frequentemente adota interpretações que contrariam essa lógica. Não são incomuns decisões que condenam provedores de aplicações ao pagamento de indenizações, mesmo quando estes agiram em conformidade com os requisitos legais. Essas decisões mostram que há uma tendência de flexibilizar a aplicação do Marco Civil da Internet, especialmente em casos que envolvem direitos fundamentais como a honra, a privacidade e a dignidade da pessoa humana. Esse cenário gera incerteza jurídica para os provedores e coloca em xeque a previsibilidade do regime de responsabilidade subsidiária. Ao mesmo tempo, revela a dificuldade do Judiciário em lidar com a complexidade das demandas relacionadas ao ambiente digital, onde direitos fundamentais frequentemente colidem.
Um exemplo disso pode ser observado no julgamento da Apelação Cível nº 1031018-13.2023.8.26.0003. Muito embora o Juízo de primeiro grau tivesse afastado o dever do provedor de aplicação de indenizar o usuário pela não remoção de duas contas falsas criadas em seu nome, após recebimento de notificação extrajudicial nesse sentido, a 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença, entendendo pela existência de dano moral indenizável. Entendeu o Tribunal que, embora o artigo 19 do Marco Civil da Internet preveja a responsabilidade subsidiária dos provedores de aplicação em casos de “flagrante ilícito”, a remoção do conteúdo infringente prescinde de decisão judicial específica nesse sentido.
Essa falta de uniformidade de interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet resulta em uma enorme insegurança jurídica tanto para as vítimas quanto para os provedores de aplicação. Cientes de que os Tribunais Estaduais estão flexibilizando a interpretação desse dispositivo legal, exigindo dos provedores de aplicação a remoção de conteúdo sem a necessidade de ordem específica nesse sentido, bastando que o conteúdo seja flagrantemente ilegal, esses entes tendem a adotar uma postura mais rígida e fiscalizatória. Com isso, muitos provedores de aplicação estão tornando indisponíveis conteúdos hospedados em suas plataformas sem a necessidade de decisão judicial, para fins do artigo 19, a fim de reduzirem as condenações a eles impostas por força da ampliação extensiva desse dispositivo legal pelos Tribunais Estaduais.
Foi o caso de um provedor de aplicação ao remover um perfil de sua rede social após o recebimento de denúncias feitas por terceiros em sua plataforma de suporte. No entanto, a 14ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no julgamento da Apelação nº 0021756-69.2019.8.19.0204, entendeu ter sida arbitrária a remoção do URL sem que houvesse ordem judicial específica nesse sentido, e condenou o provedor de aplicação ao pagamento de indenização pelos danos morais sofridos pelo dono do perfil removido.
Veja-se o conflito que foi instaurado no departamento jurídico dos provedores de aplicação: se eles seguirem as diretrizes estabelecidas pelo artigo 19 do Marco Civil da Internet, removendo os conteúdos ofensivos apenas após o recebimento de ordem judicial específica, o Poder Judiciário poderá entender que houve inércia em fiscalizar os conteúdos produzidos por terceiros e condená-los ao pagamento de indenização ao ofendido; por outro lado, se o provedor de aplicação age de forma mais proativa e indisponibiliza conteúdos supostamente ofensivos sem o preenchimento dos requisitos previstos no Marco Civil da Internet, ele pode vir a ser condenado a indenizar o dono do site ou perfil, em razão da remoção arbitrária, o que configuraria censura.
E quais são os impactos da não observância dos parâmetros que o legislador estabeleceu para a responsabilização dos provedores de aplicação? O artigo 19 da lei é fundamental para delimitar as situações em que as plataformas podem ser responsabilizadas, mas decisões judiciais que desconsideram esses parâmetros podem gerar uma impossível tarefa para esses entes, qual seja, prever as consequências legais de suas ações (ou omissões). Essa imprevisibilidade pode levar a práticas excessivamente cautelosas, como a remoção de conteúdos legítimos para evitar litígios, afetando a liberdade de expressão, reconhecendo-se a censura no ambiente digital.
Não há como se olvidar, também, dos impactos financeiros aos provedores de aplicação. Do ponto de vista financeiro, as condenações baseadas em interpretações ampliadas dos dispositivos legais aumentam os custos das plataformas, tanto devido ao pagamento de indenizações e suporte jurídico quanto ao investimento necessário para aprimorar os sistemas de moderação de conteúdo. Pequenos provedores, em especial, podem ser desproporcionalmente afetados, tendo menos recursos para lidar com os custos de litígios. O risco de condenações também pode afastar investimentos e inibir a inovação no setor digital.
A aplicação rigorosa dos critérios previstos no Marco Civil, como a necessidade de ordem judicial específica para a remoção de conteúdo, pode servir como um contrapeso importante, garantindo que as plataformas operem dentro de parâmetros claros e previsíveis. Esse equilíbrio é essencial para evitar que os provedores sejam transformados em árbitros de conteúdo, com poder excessivo sobre o que permanece ou é removido da esfera pública digital.
Este boletim tem propósito meramente informativo e não deve ser considerado a fim de se obter aconselhamento jurídico sobre qualquer um dos temas aqui tratados. Para informações adicionais, contate os líderes do Time de Contencioso e Arbitragem. CGM Advogados. Todos os direitos reservados.